Após anos de indefinição sobre o futuro do Mato do Júlio, em Cachoeirinha, pode ter seu destino traçado nos próximos meses. Se depender de entidades da região que defendem a preservação da localidade, o território de propriedade privada deve ser desapropriado pelo Governo Federal, como medida para minimizar os efeitos das mudanças climáticas.
A área de 256 hectares de floresta nativa localizada na Avenida Flores da Cunha, que está na mira da especulação imobiliária, contribuiu para reduzir o impacto das enchentes de maio na Região Metropolitana de Porto Alegre. Considerada por especialistas como “última floresta da Grande Porto”, quase se tornou um condomínio de luxo, porém, depois de inúmeras tentativas de alteração do Plano Diretor, o projeto foi engavetado com a retomada de território de famílias indígenas Mbyá Guarani.
Cercada de bairros populosos historicamente afetados por enchentes, a Mato do Júlio é rica em biodiversidade e possui características de retenção hídrica junto à várzea do Rio Gravataí. Por essa razão, o Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí enviou, na última plenária, um ofício ao governador Eduardo Leite (PSDB) que, entre outras medidas, pede a desapropriação via União.
Conforme dados da Defesa Civil de Cachoeirinha, divulgados pelo MapBiomas, o Mato do Júlio foi responsável por segurar 35% da água que caiu na cidade no dia 4 de maio. “Fizemos o calculo de área coberta pela agua e população do bairro Parque da Matriz e concluímos que sem o Mato, em torno de 8 mil pessoas a mais teriam sido afetadas”, esclarece o professor de história, Leonardo da Costa, também integrante do Coletivo Mato do Júlio.
Sérgio Cardoso, presidente da APN-VG (Associação de Preservação da Natureza Vale do Gravataí), que completou 45 anos em 2024, diz que há duas décadas a entidade vem defendendo a tese de que a área de preservação ambiental não pertence somente ao município de Cachoeirinha. Inclusive, o Comitê trouxe ao então prefeito José Stedile que o Mato Júlio é uma grande área estratégica dentro da bacia hidrográfica, para a questão da água, como se comprovou recentemente com as enchentes, e também sobre a qualidade do ar, pelo fato de serem mais de 250 hectares de vasta vegetação.
Cardoso salienta que o pedido de desapropriação é feito ao governo federal por que, “pela dimensão da área, pela importância que tem, isso extrapola nesse momento a questão municipal e também para o estado do Rio Grande do Sul acaba sendo bastante dinheiro”. Por isso, conforme o ambientalista, o ofício também chegou aos deputados e ao ministro-chefe da Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do RS, Paulo Pimenta.
No Mato do Júlio, também está localizado a Casa dos Baptista, que é o segundo imóvel mais antigo do Estado, construído ainda no período colonial e hoje em risco de desabamento. A área recebe esse nome por conta de seu último morador, Júlio Baptista, que viveu até sua morte, em 2002, no casarão construído em 1814. Júlio era um dos herdeiros do Comendador João Baptista Soares da Silveira e Souza, que quando criança veio da Ilha de Açores para Rio Grande do Sul e recebeu as terras que tornaram-se a Fazenda da Cachoeira, que deu origem ao município de Cachoeirinha.
Com dívidas milionárias milhões em IPTU, a família firmou um acordo com prefeitura, em 2019, prevendo a quitação em troca de parte do território. Pouco depois, o Executivo aprovou na Câmara de Vereadores o projeto de lei 4463/2020, que alterou o Plano Diretor para permitir o zoneamento residencial e a construção de ruas no local, até então protegida por sua definição como Área de Especial Interesse Ambiental.
Esse plano foi frustrado através da mobilização social que evidenciou diversas ilegalidades no processo realizado sem o debate público devido. Ainda houve intervenção de alguns vereadores, que na época organizaram uma frente parlamentar para barrar o projeto.
O tema retornou ao debate no segundo semestre de 2023, após o Ministério Público cobrar que o município fizesse a revisão do Plano Diretor, vencido desde 2017. Contudo, após algumas reuniões do Conselho do Plano Diretor, esse processo foi interrompido, novamente por recomendação do MP, após denúncias de que grande parcela dos conselheiros eleitos, que deveriam representar a comunidade, era ligada ao governo municipal.